segunda-feira, outubro 24, 2011

Uma tempestade perfeita

O carácter expansionista de austeridade é uma contradição nos termos. Mas os economistas da purga gostam de falar nesses efeitos da austeridade. Há um lado de verdade nisso. Quando as coisas correm mal, há sempre um momento em que já não podem piorar. É um truísmo, mas a economia é feita deles (como a Curva de Laffer).

Alesina e Giavazzi (“O Futuro da Europa. Reforma ou Declínio”) defendem este modelo de ajustamento. Dão, sobretudo, o exemplo da Irlanda no período 1987-89 (é verdade que a economia Irlandesa evaporou-se entretanto; mas isso fica para outro livro destes economistas). Com efeito, nesse processo registou-se um corte significativo da despesa pública primária, acompanhado de uma estabilização ou mesmo redução das receitas (impostos) e de uma desvalorização cambial.

Não é bem a mesma coisa que se está a fazer em Portugal. Cá, corta-se na despesa, aumentam-se os impostos e continua-se com uma taxa de câmbio que serve a uma economia com excedentes estruturais. Enfim, não parece que venhamos a ter uma austeridade expansionista. O que vamos ter é uma tempestade perfeita.

domingo, outubro 16, 2011

Comparação entre os salários da função pública e os do sector privado

Em meados de 2009 surgiu uma notícia em todos os jornais onde se afirmava, citando o trabalho de Maria Manuel Campos e Manuel Coutinho Pereira (“Salários e Incentivos na Administração Pública em Portugal”) do Banco de Portugal, qualquer coisa como “os salários da administração pública são cerca de 75% superiores aos dos que se praticam no sector privado, tendo o diferencial aumentado 25 pp. de 1999 a 2005”. Os trabalhos que tiram este tipo de conclusões têm sempre boa imprensa. É que, contrariamente aos restantes cidadãos, os funcionários públicos são uns malandros e uns privilegiados e é preciso denunciar isso.

Vamos por partes.

Parte I

O estudo começa por afirmar que “a Administração Pública […] é a entidade empregadora de cerca de um quinto da mão-de-obra nacional”, não se explicando onde é que isto empiricamente se encontra sustentado. Aparentemente, os autores limitaram-se a dividir os funcionários identificados no Recenseamento Geral da Administração Pública com um total, que resulta da soma destes funcionários com os trabalhadores por conta de outrem que constam dos Quadros de Pessoal. Como se sabe, um recenseamento (como o Recenseamento Geral da Administração Pública) abrange todo o universo e, portanto, identificaram-se todos os funcionários públicos. Os Quadro de Pessoal incluem só uma parte dos trabalhadores por conta de outrem (entre 50-70%) e excluem todos aqueles que trabalham por conta própria (profissionais liberais, empresários em nome individual, patrões, etc). Isto é, dão conta de uma só parte do universo.

Para se ser rigoroso, como é que essas contas devem ser feitas? Simplesmente, dividindo o número de funcionários identificados, em 2005, no Recenseamento Geral da Administração Pública (737,8 mil) pela população activa (5.544,9 mil)em 2005. Se assim fizermos, verificamos que os funcionários públicos representam 13,3% da população activa, isto é, "cerca de um oitavo". Mas, se quisermos obter dados mais negativos, podemos sempre dividir esse número de funcionários pelo número de empregados em 2005 (5.099,9 mil). Se assim fizemos, verificamos, agora, que os funcionários públicos explicam 14,5% do emprego total, isto é, "cerca de um sétimo".

Bem, quaisquer que sejam as contas, os funcionários públicos representam entre um sétimo a um oitavo do total, conforme nos referimos ao emprego ou à população activa.

Porque é que os autores falam em “cerca de um quinto”? A expressão “cerca”, num "rigoroso" trabalho académico, acaba por revelar todo um programa político. Convém deixar claro que os malandros dos funcionários públicos para além de ganharem mais do que os outros, ainda por cima, são muitos.

Quanto a esta parte, estamos conversados.

Parte II

Este mesmo trabalho referia que não só os funcionários públicos ganhavam mais que os seus congéneres privados como esse diferencial se tinha agravado em 25 pp de 1999 a 2005. Sabendo-se que durante esse período, na função pública, houve de tudo para se evitar o aumento dos salários em termos reais e, mesmo, nominais (congelamento de salários e carreiras nuns anos e em várias categorias profissionais, progressões limitadas a avaliações de desempenho de “excelente”, reduzidas a uma quota de 5%), esta conclusão não deixava de suscitar uma certa perplexidade.

A ser verdade isto, então, durante este período, ter-se-iam registado em Portugal reduções nominais de salários no sector privado. Isto não é possível e, simplesmente, não aconteceu. A explicação vem um pouco à frente. Com efeito, os autores confirmam que a cobertura dos dados do sector privado tem vindo a aumentar, passando a incluir, nos Quadros de Pessoal, uma “maior número de empresas de pequena dimensão, às quais estão normalmente associada uma penalização salarial”.

Enfim, efectuaram-se duas comparações em dois momentos no tempo que não são metodologicamente aceitáveis. Compararam-se duas coisas que não são comparáveis. Os autores sabem bem disso. Porque é que o fizeram, ainda para mais, em nome do Banco de Portugal? Mistério…

Quem quer um “think tank” neoliberal deve-o pagar. Colocar todos os portugueses a pagá-lo parece-me um abuso.

Quanto a esta parte, também estamos conversados.

Parte III

Chegamos ao ponto que mais foi sublinhado pela imprensa. Os funcionários públicos ganham muito mais que os seus congéneres privados. O diferencial, em 2005, já ia nos 75%.

Embora se procurem compatibilizar as categorias dos trabalhadores da Administração Pública com as do privado, reclassificando os primeiros de acordo com a Classificação Nacional de Profissões, exercício algo arbitrário quando se sabe que muitas das funções públicas não têm equivalência no privado (juízes, magistrados, polícias, etc) e que outras são dominantes (médicos, enfermeiros, professores universitários, etc), um dado suscita, logo, algumas dúvidas quanto à própria legitimidade da comparação. Enquanto na Administração Pública cerca de 50% dos trabalhadores dispõem de formação universitária, no sector privado essa proporção é de 10%.

Seria mais ou menos o mesmo que, com todos os ajustamentos necessários, proceder à comparação dos salários dos investigadores do Banco de Portugal que efectuaram este estudo com os dos trabalhadores da pastelaria da esquina que lhes servem o primeiro café da manhã.

O que é mais impressionante nestes dados, mais do que o tal diferencial de remunerações, é a qualificação dos trabalhadores do sector privado (e o que ela revela sobre o seu perfil de especialização) e os baixos níveis de remunerações que usufruem. A mediana dos salários no sector privado é de 626 € e, mais do que isso, a sua “distribuição encontra-se bastante concentrada em torno do salário mínimo nacional”. Os salários do sector privado têm uma grande concentração no primeiro quartil e uma estrutura unimodal, já os do sector público têm uma menor concentração, apresentando uma distribuição plurimodal, de acordo com a diversidade das carreiras existentes.

Em conclusão, a grande notícia não é o diferencial dos salários entre os sectores público e privado. A grande notícia pode ser qualquer uma destas: (i) o baixíssimo nível de qualificação dos trabalhadores do sector privado e das suas remunerações (muito próximas do salário mínimo nacional), (ii) a elevada desigualdade salarial neste mesmo sector. Qualquer uma delas dá-nos informações muito importantes sobre o que somos. Sobre o perfil de especialização do sector privado em Portugal e do seu contributo para um dos níveis de desigualdade social mais elevados da União Europeia.

Quanto a esta parte, estamos conversados. Vamos passar a comparar aquilo que é comparável. As surpresas vêm aí.

Parte IV

Face à importância na explicação dos resultados globais, os autores passam, no momento seguinte, a efectuar uma análise comparativa dos trabalhadores licenciados nos sectores privado e público. Continua-se, mesmo neste exercício, a meter no mesmo saco profissões que só existem no Estado, que não têm qualquer paralelo no sector privado (magistrados judiciais e do Ministério Público, diplomatas, etc), e outras em que esse mesmo Estado tem um papel dominante no mercado de trabalho (professores universitários e do ensino básico e secundário, médicos, enfermeiros, etc), não existindo, propriamente, condições para a existência de concorrência entre salários.

Neste exercício, verifica-se que no início da carreira a Administração Pública paga melhor. No entanto, passado muito pouco tempo esse diferencial deixa de existir e são os trabalhadores do sector privado que passam a auferir muito mais, sobretudo a partir de 10 anos de experiência profissional.

Também existe um dado curioso. É verdade que os funcionários públicos têm um prémio à entrada em relação aos do privado. Só que, simplesmente, quase não têm sido admitidos novos licenciados na Administração Pública. Aquilo que é uma vantagem teórica acaba por não se concretizar na prática. Essa perda de importância do Estado como empregador de licenciados não deixa de ter consequências sobre os salários pagos no sector privado. Como sublinham os autores, “as empresas, ao terem de concorrer menos por estes trabalhadores, terão baixado o salário de entrada”.

Enfim, há cada vez mais licenciados. O Estado não só não tem acompanhado este aumento da oferta como está mesmo a diminuir as suas admissões. O sector privado, face a isto, tem vindo a diminuir os salários à entrada. Mesmo assim, passados alguns anos, os licenciados do sector privado auferem salários superiores aos dos seus congéneres públicos.

Mais uma parte resolvida. Mas vêm aí mais reflexões interessantes.

Parte V

A seguir os autores passam a comparar aquilo que, aparentemente, é comparável. Começam por excluir deste exercício as funções que só existem no Estado (juízes, magistrados, diplomatas, etc). Dos restantes licenciados da Administração Pública, separam-nos em dois grupos. O primeiro agrega as profissões em que o Estado é o empregador dominante, embora também existam no sector privado, como: médicos, enfermeiros, professores do ensino básico, secundário e superior. O outro abrange os profissionais que estão bem representados em ambos os sectores, tais como: engenheiros, economistas, informáticos e juristas.

Os do primeiro grupo, na média, auferem mais do que os seus congéneres privados (+27,5%). Face a isto, os autores referem que este diferencial pode ser um indicador de que estas profissões não são completamente compráveis nos dois sectores. Sublinham, a este propósito, as áreas da saúde e do ensino superior, onde muitos dos seus profissionais públicos desempenham funções particularmente exigentes em termos de qualificações, as quais não têm correspondência no sector privado. Os salários que estes funcionários públicos auferem também reflectem, por sua vez, o seu poder negocial, decorrente da importância social das suas funções e do papel dos seus sindicatos.

Quanto aos outros, a situação é completamente inversa. Na média, um engenheiro, um informático, um jurista ou um economista da função pública ganha menos, respectivamente, -4,3%, -13,8%, -1,1% e – 18,6% do que um trabalhador com idênticas habilitações no sector privado. Este diferencial no terceiro quartil passa para -19,1%, -26,3%, -21,8% e – 36,6%.

Este diferencial ocorre, ainda por cima, sem se tomarem em consideração “compensações em espécie e outros benefícios, que têm particular relevâncias no sector privado”.

Se for licenciado em engenharia, direito ou economia e se alguém lhe vier falar dos privilégios da função pública, esfregue-lhe com este números na cara.

Todas as partes estão analisadas. Talvez falte uma síntese global. É o que iremos fazer a seguir.

Conclusão

Este estudo de Maria Manuel Campos e Manuel Coutinho Pereira permite-nos tirar conclusões muito interessantes. Aqui vão um par delas:

1. Os trabalhadores não qualificados do sector público ganham bastante mais do que os seus congéneres do sector privado. É pena que o estudo não tenha avançado mais nesta análise;

2. O peso dos não qualificados no sector privado, comparativamente ao do sector público, é esmagador. Os trabalhadores não qualificados do sector privado ganham muito pouco. Em regra, ganham o salário mínimo ou pouco mais. Mais, a desigualdade salarial no sector privado é enorme. Isto diz muito sobre o perfil de especialização da economia portuguesa e sobre o que somos e o que queremos ser como país;

3. Os trabalhadores da Administração Pública que dispõem de licenciatura ganham mais à entrada, mas a sua progressão na carreira é muito mais lenta. Só que nos últimos anos têm entrado muito poucos funcionários Assim, se é verdade que os trabalhadores do sector privado ganham menos no início, passado alguns anos os seus salários ultrapassam os do sector público;

4. Os salários de uns e outros estão correlacionados, o que não é novidade. Os níveis salários do sector público influenciam os do privado e vice-versa;

5. As profissões que só existem na Administração Pública ou que são dominantes no mercado de trabalho têm níveis salariais superiores aos das profissões do sector público que estão em concorrências com as do sector privado (licenciados em engenharia, direito e economia);

6. Essas profissões são mais mal pagas no sector público do que no privado e esse diferencial acentua-se ao longo do tempo. Na prática, o sector público não é concorrencial com o privado para este perfil de trabalhadores;

7. Este estudo não incorpora todas as alterações verificadas desde 2005. Em 2006, 2007 e 2008 verificaram-se perdas de salários reais na função pública, que só muito parcialmente foram compensadas em 2009;

8. Também durante este período, foi alterado o regime contratual da função pública. O regime de nomeação foi substituído pelo contrato de funções públicas, que configura uma precarização do vínculo contratual e, em geral, uma equiparação desse vínculo ao previsto para todos os restantes trabalhadores (estabelecido no Código do Trabalho);

9. Nesse processo, as progressões na Administração Pública foram significativamente restringidas. As progressões obrigam a uma acumulação de 10 pontos nas sucessivas classificações de serviço anuais, sendo que, por um lado, as classificações de “Bom”, “Muito Bom” e “Excelente” asseguram, respectivamente, pontuações de 1, 2 e 3 e, por outro, as classificações de “Muito Bom” e “Excelente” não podem ultrapassar, respectivamente, 20% e 5%. Em média, um trabalhador da função pública vai precisar de 8 anos para progredir para a categoria seguinte; podendo esse período atingir, no limite, os 10 anos;

10. O Recenseamento Geral da Administração Pública incorpora todos os funcionários que trabalham para o Estado independentemente do tipo de vínculo. A maior parte dos cidadãos imagina que todos s que trabalham para o estado o fazem com contratos estáveis. Não é assim. Uma percentagem muito significativa desses funcionários, em especial dos mais novos, dispõe, simplesmente, de contratos a prazo.

Em suma, este estudo é muito interessante e só foi pena que os seus autores optassem aqui e ali por um estilo panfletário. Esse registo só permite que, colectivamente, vamos exprimindo o nosso pior defeito: a inveja. Os salários de ambos os sectores estão estreitamente relacionados. Não é por os salários dos funcionários públicos serem piores ou por estes terem piores condições de trabalho que os trabalhadores do sector privado ficam melhor. Também se os salários dos trabalhadores do sector privado e as suas condições de trabalho se degradarem, os funcionários públicos não ficam melhor. Muito pelo contrário.

Esta disputa, colocada neste termos, só interessa aos patrões e administradores de empresas que querem cada vez mais pagar menos aos seus trabalhadores. A inteligência ou, sobretudo, a falta dela não é património dos trabalhadores do sector público ou do privado. Como nos diz Carlo Maria Cippola, a estupidez está subestimada no universo humano. Há sempre mais estúpidos do que imaginamos. Para este autor, um estúpido é alguém que produz danos a outro ou outros sem que daí retire qualquer benefício, pelo contrário, gerando prejuízos a si próprio também. Quem é que quer continuar a ser estúpido?

quarta-feira, setembro 28, 2011

Um citação de Krugman muito a propósito

“A questão é que não se pode ter tudo: um país, de três, tem de escolher dois. Pode fixar a sua taxa de câmbio sem enfraquecer o seu banco central, mas apenas mantendo controlos sobre os fluxos de capital (como a China na actualidade); pode deixar livre o movimento de capitais e manter a autonomia monetária, mas apenas se deixar flutuar a taxa de câmbio (como o Reino Unido ou o Canadá); ou pode decidir deixar livre o capital e estabilizar a moeda, mas apenas com o abandono de qualquer possibilidade de ajustar as taxas de juro para combater a inflação, ou a recessão (como a Argentina actualmente ou, para esse efeito, a maior parte da Europa)”

terça-feira, setembro 20, 2011

O Euro, essa grande conspiração

Seja ensaio ou ficção, qualquer livro da Aletheia é sempre um thriller. O “Como nos Livramos do Euro?” não foge à regra. Apesar de tudo tem uma ou outra ideia interessante. A principal é que o euro permitiu reconfigurar oligopólios nacionais, muitos deles sobre a forma de cartéis, à escala da Zona Euro. Qualquer cartel gera preços superiores aos de equilíbrios e, assim sendo, o aumento das vendas por parte de um dos seus membros face à quota que lhe está destinada gera um lucro adicional. Esse incentivo torna este tipo organização muito instável. Qualquer cartel implica, assim, um elevado grau de controlo entre todos os participantes no conluio. Esse nível de controlo só é possível a uma escala supranacional se existir uma moeda comum. A existência de várias moedas e das respectivas flutuações cambiais torna esse controlo muito pouco eficaz.

Para o autor (Jean-Jacques Rosa) a existência desses cartéis é que está na base da baixa produtividade da Europa e, especialmente, da Zona Euro e, portanto, do anémico crescimento económico verificado desde o início do processo de convergência nominal, iniciado em meados da década de noventa e que se concluiu com a criação do Euro. O autor é adepto da teoria da conspiração e, consequentemente, considera que tudo foi planeado pelos grandes grupos empresariais europeus para que assim fosse.

A ideia, mais do que interessante, tem lógica. Mas não basta ter lógica. É preciso outra sustentação empírica, que o autor não avança. A parte da conspiração parece-me mais rebuscada. Percebo a necessidade de se explicar porque é que as coisas são como são. Mas a explicação mais simples talvez seja a da incompetência dos economistas “mainstrean”, associada ao deslumbramento dos políticos, que nos têm governado, com tudo o que cheire a expectativas racionais, mercados auto-reguláveis, equilíbrios orçamentais e quejandos.

sexta-feira, setembro 16, 2011

É preciso fazer um desenho?

Para quem ainda tenha dúvidas sobre o que diz Robert B Reich e que aqui reproduzi, aqui vai um desenho. Ninguém tem dúvidas, pois não?