quinta-feira, dezembro 28, 2006

Para que a pergunta faça cada vez menos sentido...

No texto anterior, procurámos identificar as causas que podem colocar o seguinte dilema a qualquer funcionário no exercício das suas funções: a obediência ao poder político democraticamente instituído ou a resposta aos interesse dos cidadãos, de acordo com o julgamento que dele faz em cada momento. Isto pressupõe, naturalmente, que, em certos casos, estas duas opções sejam mutuamente exclusivas. Chegámos a dois tipos de causas: (in)diferenciação entre a esfera de intervenção do poder político e a da administração e (falta de) escrutínio, pelos cidadão, da acção pública e, em termos gerais, da governação.

Conhecidas as causas e as consequências (que decorrem da própria existência do dilema) procuraremos chegar às soluções. Essas soluções não podem deixar de ter em consideração, porém, o contexto fortemente politizado (para não dizer partidarizado) que preside à selecção dos principais dirigentes da administração pública em Portugal (“spoil system” que foi, já, institucionalizado por este Governo).

Primeiro, maior autonomia da administração pública face ao poder político implica uma relação contratual que salvaguarde a independência dos funcionários. O “patrão” tem que ser o cidadão e não o chefe. Ora, em muitas das funções do Estado, isso não é compatível com um regime contratual idêntico ao do sector privado. Não é por acaso que os funcionários públicos, no acto de posse, prometem “cumprir com lealdade [de acordo com a lei] as funções que lhes são confiadas” e não, por exemplo, “cumprir obedientemente tudo o que os chefes lhes mandem fazer”. A forma como é encarada esta questão da lei faz toda a diferença ente o contexto de trabalho dos funcionários públicos e privados.

É verdade que os privados também têm que cumprir a lei. Agora, na administração pública, é a própria lei que estabelece a comunicação entre quem decide (o poder político) e quem executa (a administração pública). A comunicação das decisões, no Estado, reveste-se desse formalismo (quer se tratem de Despachos, Portarias, Decretos, …). É como se na administração pública a desobediência dos funcionários seja, antes de mais, uma violação da própria lei. A desobediência, no sector privado, não tem este ónus.

Por outro lado, a administração pública é um garante do estado de direito democrático e, portanto, um garante dos direitos individuais dos cidadãos. Isto é, a administração pública também é um garante que não existem “ditaduras da maioria” e que, por essa razão, os interesses da maioria não podem ser satisfeitos em prejuízo dos direitos individuais dos cidadãos e, por essa razão, dos direitos das minorias. A ideia de um governo limitado (constitucionalmente) pressupõe, naturalmente, essa autonomia da administração pública. Ninguém, no sector privado, tem, implícita ou explicitamente, este nível de compromisso.

Segundo, maior escrutínio da acção pública e da governação implica uma maior proximidade dos cidadãos em relação às decisões (e a quem decide). Só isso é que permite uma efectiva responsabilização (“accountability”) dos agentes públicos. A aplicação, em concreto, do princípio da subsidiariedade implica, entre nós, uma coisa muito simples: mais, muito mais, descentralização. Descentralização para a administração local e suas associações, criação de um nível intermédio de administração entre administração local e a administração central (sejam áreas metropolitanas ou regiões administrativas) …. Em Portugal, como em qualquer parte do mundo, tudo isto não é fácil. Jamais alguém (o centro) abdica do seu poder sem, para isso, ser (praticamente) compelido.

Chegados aqui, resta perguntar: como é que as coisas em Portugal estão a evoluir? Qual é o pensamento dominante?

Antecipando, um pouco, as respostas, não posso deixar de dizer que estamos a pagar (e vamos pagar ainda mais) com menos democracia as fragilidades da nossa administração pública na relação com outros poderes instituídos.

Sem comentários: