quinta-feira, novembro 18, 2010

De que têm medo os sociais-democratas?

A leitura de "Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos”, de Tony Judt, é profundamente inquietante. Algo de muito errado aconteceu para que quando qualquer um de nós se afirma social-democrata seja quase proscrito. A síntese ou o consenso social-democrata na Europa, com os seus irmãos gémeos liberais no EUA, produziu uma era de extraordinário progresso (“Les trente glorieuse”, na conhecida expressão francesa); progresso, no sentido iluminista, que se traduz na crença de que as próximas gerações irão viver melhor que actual que, por sua vez, vive melhor que as anteriores.

Este consenso permitiu conciliar o que hoje parece irreconciliável: liberdade, democracia, crescimento económico e redução das desigualdades. Cada uma destas coisas é boa por si só; em conjunto são a quadratura do círculo. Como é possível que tenhamos perdido “completamente a fé neste sistema”? Uma coisa é admitir que ele não possa perdurar nos exactos termos em que existiu há trinta anos atrás. Outra bem diferente é renegá-lo. E renegá-lo renegando-se a si mesmo. Isto é, hoje quem o renega é um produto dele; que de outra forma não teria tido acesso à cultura, ao conhecimento, à educação, à saúde, enfim, a uma “vida boa”.

Quem o começa a renegar é a geração de 60. A contestação dessa época foi, em parte, a afirmação do indivíduo contra Estado. Foi de esquerda. Foi inspirada, para muitos, em regimes colectivistas como o chinês. Mas, a prazo, foi um movimento que começou a destruir a noção de partilha de um destino colectivo e de pertença a uma comunidade. Foi, na prática, um aliado da direita mais conservadora.

E chegámos à situação absurda, como nos diz Judt, de “termos tanta certeza que algum planeamento, ou o imposto progressivo, ou a propriedade colectiva de bens públicos são restrições intoleráveis à liberdade, enquanto câmaras de televisão em circuito fechado, viabilizações estatais de bancos de investimento grandes demais para falir, telefones sobre escuta e guerras dispendiosas no estrangeiro são fardos aceitáveis para um povo livre”.

segunda-feira, novembro 15, 2010

Austeridade? Não obrigado!

Esta política de austeridade não é óbvia e, mais do que isso, é perigosa. Há várias maneiras de explicar porquê, mas esta é a mais simples e, portanto, a melhor que conheço.

quarta-feira, novembro 10, 2010

Regionalização e finanças públicas

Há dias participei num “workshop” sobre regionalização e finanças públicas. Como todos seguramente concordamos, não pode existir regionalização que não envolva um processo de responsabilização dos eleitos relativamente aos recursos orçamentais que são postos à sua disposição. A meu ver, esta questão antecede a do estabelecimento do modelo de financiamento e nem sempre é de fácil resolução. No caso dos municípios, por exemplo, nem sempre os cidadãos responsabilizam na proporção devida este nível político sobre a fiscalidade que sobre eles incide.

Nesta discussão releva mais um ponto relativamente a todos os outros, e que resulta de necessidade de se clarificarem as competências dos futuros governos regionais antes de se discutir o seu financiamento. Não é preciso, desde já, estabelecer um orçamento de base zero que identifique para cada competência os respectivos custos e, depois, a origem dos recursos que os irão financiar. Agora, é necessário clarificar o seguinte ponto: ou os governos regionais podem efectuar despesas de investimento ou limitam-se a promover o investimento, público e privado, a realizar nas suas regiões.

No primeiro caso, os governos têm que dispor de capacidade para apresentar (e executar) orçamentos deficitários e, portanto, constituem-se como entidades susceptíveis de aumentarem o nível de endividamento público. No segundo caso, pode e deve-se exigir um orçamento com saldo nulo entre despesas e receitas efectivas. No primeiro caso, estamos em presença de futuros governos regionais mais pesados do ponto de vistas das suas competências, nomeadamente, nas áreas da educação, saúde e transportes. No segundo caso, teríamos governos regionais mais “soft” num primeiro momento (em matéria de investimento público limitar-se-iam a promover e financiar o que respeita à administração local e administração central). Gradualmente, pela própria dinâmica deste processo, poderiam ir ganhando novas competências nos tais sectores “mais pesados” em termos de investimento e despesa pública (mesmo que inicialmente essas competências decorram da execução de contratos-programa com o Estado Central e da negociação com a Administração Central dos investimentos a co-financiar pelos Fundos Estruturais, esmagadoramente geridos, nesta caso, pelos governos regionais).

Na actual situação económica do país, esta clarificação é fundamental. O mais avisado seria, porventura, optar por começar de forma gradual. Se assim não for, então terá que existir uma “cláusula travão” sobre o endividamento regional que seja credível e suficientemente dissuasora de comportamentos, até, de “risco moral”.

quarta-feira, novembro 03, 2010

Em poucas palavras

Há quem diga num parágrafo o que pensamos há muito e não conseguimos dizer. Escrevemos, reescrevemos e nunca encontramos as palavras certas. Tony Judt (“O Século XX Esquecido”) tem-nas:

“A idealização do mercado, com a pretensão de que em princípio tudo é possível e as forças de mercado determinam que possibilidades irão surgir, é a mais recente (se não a derradeira) ilusão modernista: a de que vivemos num mundo de potencial infinito, onde somos senhores dos nossos destinos (embora de certo modo simultaneamente dependentes do desfecho imprevisível de forças que não controlamos). Os defensores do Estado intervencionista são mais modestos e desenganados. Preferem escolher entre desfechos possíveis a deixar o resultado ao acaso, nem que seja por haver algo intuitiva e desagradavelmente insensível em confiar certo género de bens, serviços e oportunidades aos caprichos do destino”.

segunda-feira, novembro 01, 2010

Mas que grande nó cego!

Vítor Bento é um dos mais sérios economistas portugueses “mainstream”. É sério porque expõe o seu diagnóstico sobre a situação da economia portuguesa com rigor e procura, dentro do seu quadro conceptual, encontrar soluções. Enfim, expõe-se e não se limita a criticar e a dizer sempre que andou a avisar. Neste novo livro (“O Nó cego da economia. Como resolver o principal bloqueio do crescimento económico”) retoma e aprofunda o diagnóstico e as soluções que já tinha apresentado no anterior (“Perceber a crise para encontrar o caminho”).

Neste aprofundamento algumas coisas mudaram um pouco em relação ao texto anterior. Segundo o autor, a crise começa com o processo deflacionário da economia portuguesa que se inicia, grosso modo, com a adesão ao Sistema Monetário Europeu, isto é, com o abandono da desvalorização deslizante do escudo (”crawling peg”). Assim, não começa com a adesão ao Euro ou após 1995, como se apontava anteriormente. As soluções para a economia portuguesa são agora analisadas também em contextos mais alargados, que são o da União Europeia e o da zona Euro.

Mesmo assim, continua um ou outro julgamento moral. O último capítulo é, a esse título, o pior. Os alemães moralmente são superiores aos povos do sul da Europa e essa superioridade é que explica o seu sucesso económico e a sua supremacia política. Não existe qualquer enquadramento histórico sobre o pós segunda guerra mundial e sobre o papel dos Estados Unidos e de muitos aliados no perdão da dívida alemã e na criação das condições para o seu desenvolvimento e do da Europa. O “Plano Marshall” e coisas assim nunca existiram e tudo se deve à capacidade de trabalho e à propensão para a poupança dos alemães. De um lado está a virtude; do outro todos os defeitos. De um lado está o trabalho e a forretice; do outro está a preguiça e o desperdício. De um lado está a formiga; do outro está a cigarra.

Não concordo com este tipo de raciocínio. Para além do mais, ele é inútil. Colocadas assim as coisas, a política económica não tem qualquer utilidade e pertinência. As coisas são determinada genética e sociologicamente e a esse nível a economia e a política nada podem fazer. A análise económica feita nestes termos, apesar do recurso a expressões como “as funções de preferência social dos países”, nega-se a si mesma.

Mas esta é a parte que menos importa. O que importa são as soluções apontadas a nível nacional e europeu.

A nível nacional, aponta-se a necessidade de se reproduzirem os efeitos que uma desvalorização cambial produziria. Assim, não se podendo mexer na taxa de câmbio nominal, ajusta-se a taxa de câmbio real. Para esse efeito, ajusta-se o nível de preços internos. Ajustar o nível de preços internos passa, antes de mais, pela redução dos preços dos bens e serviços não transaccionáveis, até porque o sector dos bens e serviços transaccionáveis actua em regime de “price taker” e, portanto, os respectivos preços já se encontram alinhados, por definição, com os internacionais.

A nível europeu, o processo de reequilíbrio macroeconómico, tendencialmente deflacionário, dos PIIGS teria que ser compensado pelo aumento da procura interna da Alemanha e dos países alinhados com a sua economia. A contracção de todas as economias, como se está a verificar, tenderá a gerar um espiral contracionária e, mesmo, deflacionária sem fim à vista e de consequências imprevisíveis.

A meu ver, estas soluções não têm grande futuro. Os problemas que levaram a esta situação são aqueles que impedem estas soluções.

Em primeiro lugar, o ajustamento interno dos preços pressuporia que fosse possível um acordo (um pacto social, segundo o autor) com os responsáveis, empresarias e sindicais, deste sector dos não transaccionáveis. Estes representantes teriam, assim, os seus interesses alinhados com o interesse nacional a longo prazo. Só que o capital não tem pátria. A posse destes sectores há muito tempo que não é nacional. Mais, a posse de muitas das “utilities” é de vários tipos de fundos(de pensões, etc), cuja gestão valoriza a óptica do curto prazo. Mesmo que a propriedade fosse nacional, já se viu até onde chega o patriotismo dos nossos capitalistas ou a sua visão de longo prazo.

A nível europeu, deflacionar de um lado para inflacionar do outro precisa de outra política monetária do lado do BCE. Não nos parece que daí venha nada de novo. Por outro lado, os desequilíbrios macroeconómicos dos PIIGS foram largamente fomentados pela Alemanha (através de uma política consistentemente deflacionária), que foi quem com eles mais lucrou. Depois de ter lucrado com eles, duvido que esteja muito interessada em arranjar qualquer solução. A partir de agora, virar-se-á para outro lado, e há muitos sítios no mundo para onde se virar.