segunda-feira, outubro 24, 2011

Uma tempestade perfeita

O carácter expansionista de austeridade é uma contradição nos termos. Mas os economistas da purga gostam de falar nesses efeitos da austeridade. Há um lado de verdade nisso. Quando as coisas correm mal, há sempre um momento em que já não podem piorar. É um truísmo, mas a economia é feita deles (como a Curva de Laffer).

Alesina e Giavazzi (“O Futuro da Europa. Reforma ou Declínio”) defendem este modelo de ajustamento. Dão, sobretudo, o exemplo da Irlanda no período 1987-89 (é verdade que a economia Irlandesa evaporou-se entretanto; mas isso fica para outro livro destes economistas). Com efeito, nesse processo registou-se um corte significativo da despesa pública primária, acompanhado de uma estabilização ou mesmo redução das receitas (impostos) e de uma desvalorização cambial.

Não é bem a mesma coisa que se está a fazer em Portugal. Cá, corta-se na despesa, aumentam-se os impostos e continua-se com uma taxa de câmbio que serve a uma economia com excedentes estruturais. Enfim, não parece que venhamos a ter uma austeridade expansionista. O que vamos ter é uma tempestade perfeita.

domingo, outubro 16, 2011

Comparação entre os salários da função pública e os do sector privado

Em meados de 2009 surgiu uma notícia em todos os jornais onde se afirmava, citando o trabalho de Maria Manuel Campos e Manuel Coutinho Pereira (“Salários e Incentivos na Administração Pública em Portugal”) do Banco de Portugal, qualquer coisa como “os salários da administração pública são cerca de 75% superiores aos dos que se praticam no sector privado, tendo o diferencial aumentado 25 pp. de 1999 a 2005”. Os trabalhos que tiram este tipo de conclusões têm sempre boa imprensa. É que, contrariamente aos restantes cidadãos, os funcionários públicos são uns malandros e uns privilegiados e é preciso denunciar isso.

Vamos por partes.

Parte I

O estudo começa por afirmar que “a Administração Pública […] é a entidade empregadora de cerca de um quinto da mão-de-obra nacional”, não se explicando onde é que isto empiricamente se encontra sustentado. Aparentemente, os autores limitaram-se a dividir os funcionários identificados no Recenseamento Geral da Administração Pública com um total, que resulta da soma destes funcionários com os trabalhadores por conta de outrem que constam dos Quadros de Pessoal. Como se sabe, um recenseamento (como o Recenseamento Geral da Administração Pública) abrange todo o universo e, portanto, identificaram-se todos os funcionários públicos. Os Quadro de Pessoal incluem só uma parte dos trabalhadores por conta de outrem (entre 50-70%) e excluem todos aqueles que trabalham por conta própria (profissionais liberais, empresários em nome individual, patrões, etc). Isto é, dão conta de uma só parte do universo.

Para se ser rigoroso, como é que essas contas devem ser feitas? Simplesmente, dividindo o número de funcionários identificados, em 2005, no Recenseamento Geral da Administração Pública (737,8 mil) pela população activa (5.544,9 mil)em 2005. Se assim fizermos, verificamos que os funcionários públicos representam 13,3% da população activa, isto é, "cerca de um oitavo". Mas, se quisermos obter dados mais negativos, podemos sempre dividir esse número de funcionários pelo número de empregados em 2005 (5.099,9 mil). Se assim fizemos, verificamos, agora, que os funcionários públicos explicam 14,5% do emprego total, isto é, "cerca de um sétimo".

Bem, quaisquer que sejam as contas, os funcionários públicos representam entre um sétimo a um oitavo do total, conforme nos referimos ao emprego ou à população activa.

Porque é que os autores falam em “cerca de um quinto”? A expressão “cerca”, num "rigoroso" trabalho académico, acaba por revelar todo um programa político. Convém deixar claro que os malandros dos funcionários públicos para além de ganharem mais do que os outros, ainda por cima, são muitos.

Quanto a esta parte, estamos conversados.

Parte II

Este mesmo trabalho referia que não só os funcionários públicos ganhavam mais que os seus congéneres privados como esse diferencial se tinha agravado em 25 pp de 1999 a 2005. Sabendo-se que durante esse período, na função pública, houve de tudo para se evitar o aumento dos salários em termos reais e, mesmo, nominais (congelamento de salários e carreiras nuns anos e em várias categorias profissionais, progressões limitadas a avaliações de desempenho de “excelente”, reduzidas a uma quota de 5%), esta conclusão não deixava de suscitar uma certa perplexidade.

A ser verdade isto, então, durante este período, ter-se-iam registado em Portugal reduções nominais de salários no sector privado. Isto não é possível e, simplesmente, não aconteceu. A explicação vem um pouco à frente. Com efeito, os autores confirmam que a cobertura dos dados do sector privado tem vindo a aumentar, passando a incluir, nos Quadros de Pessoal, uma “maior número de empresas de pequena dimensão, às quais estão normalmente associada uma penalização salarial”.

Enfim, efectuaram-se duas comparações em dois momentos no tempo que não são metodologicamente aceitáveis. Compararam-se duas coisas que não são comparáveis. Os autores sabem bem disso. Porque é que o fizeram, ainda para mais, em nome do Banco de Portugal? Mistério…

Quem quer um “think tank” neoliberal deve-o pagar. Colocar todos os portugueses a pagá-lo parece-me um abuso.

Quanto a esta parte, também estamos conversados.

Parte III

Chegamos ao ponto que mais foi sublinhado pela imprensa. Os funcionários públicos ganham muito mais que os seus congéneres privados. O diferencial, em 2005, já ia nos 75%.

Embora se procurem compatibilizar as categorias dos trabalhadores da Administração Pública com as do privado, reclassificando os primeiros de acordo com a Classificação Nacional de Profissões, exercício algo arbitrário quando se sabe que muitas das funções públicas não têm equivalência no privado (juízes, magistrados, polícias, etc) e que outras são dominantes (médicos, enfermeiros, professores universitários, etc), um dado suscita, logo, algumas dúvidas quanto à própria legitimidade da comparação. Enquanto na Administração Pública cerca de 50% dos trabalhadores dispõem de formação universitária, no sector privado essa proporção é de 10%.

Seria mais ou menos o mesmo que, com todos os ajustamentos necessários, proceder à comparação dos salários dos investigadores do Banco de Portugal que efectuaram este estudo com os dos trabalhadores da pastelaria da esquina que lhes servem o primeiro café da manhã.

O que é mais impressionante nestes dados, mais do que o tal diferencial de remunerações, é a qualificação dos trabalhadores do sector privado (e o que ela revela sobre o seu perfil de especialização) e os baixos níveis de remunerações que usufruem. A mediana dos salários no sector privado é de 626 € e, mais do que isso, a sua “distribuição encontra-se bastante concentrada em torno do salário mínimo nacional”. Os salários do sector privado têm uma grande concentração no primeiro quartil e uma estrutura unimodal, já os do sector público têm uma menor concentração, apresentando uma distribuição plurimodal, de acordo com a diversidade das carreiras existentes.

Em conclusão, a grande notícia não é o diferencial dos salários entre os sectores público e privado. A grande notícia pode ser qualquer uma destas: (i) o baixíssimo nível de qualificação dos trabalhadores do sector privado e das suas remunerações (muito próximas do salário mínimo nacional), (ii) a elevada desigualdade salarial neste mesmo sector. Qualquer uma delas dá-nos informações muito importantes sobre o que somos. Sobre o perfil de especialização do sector privado em Portugal e do seu contributo para um dos níveis de desigualdade social mais elevados da União Europeia.

Quanto a esta parte, estamos conversados. Vamos passar a comparar aquilo que é comparável. As surpresas vêm aí.

Parte IV

Face à importância na explicação dos resultados globais, os autores passam, no momento seguinte, a efectuar uma análise comparativa dos trabalhadores licenciados nos sectores privado e público. Continua-se, mesmo neste exercício, a meter no mesmo saco profissões que só existem no Estado, que não têm qualquer paralelo no sector privado (magistrados judiciais e do Ministério Público, diplomatas, etc), e outras em que esse mesmo Estado tem um papel dominante no mercado de trabalho (professores universitários e do ensino básico e secundário, médicos, enfermeiros, etc), não existindo, propriamente, condições para a existência de concorrência entre salários.

Neste exercício, verifica-se que no início da carreira a Administração Pública paga melhor. No entanto, passado muito pouco tempo esse diferencial deixa de existir e são os trabalhadores do sector privado que passam a auferir muito mais, sobretudo a partir de 10 anos de experiência profissional.

Também existe um dado curioso. É verdade que os funcionários públicos têm um prémio à entrada em relação aos do privado. Só que, simplesmente, quase não têm sido admitidos novos licenciados na Administração Pública. Aquilo que é uma vantagem teórica acaba por não se concretizar na prática. Essa perda de importância do Estado como empregador de licenciados não deixa de ter consequências sobre os salários pagos no sector privado. Como sublinham os autores, “as empresas, ao terem de concorrer menos por estes trabalhadores, terão baixado o salário de entrada”.

Enfim, há cada vez mais licenciados. O Estado não só não tem acompanhado este aumento da oferta como está mesmo a diminuir as suas admissões. O sector privado, face a isto, tem vindo a diminuir os salários à entrada. Mesmo assim, passados alguns anos, os licenciados do sector privado auferem salários superiores aos dos seus congéneres públicos.

Mais uma parte resolvida. Mas vêm aí mais reflexões interessantes.

Parte V

A seguir os autores passam a comparar aquilo que, aparentemente, é comparável. Começam por excluir deste exercício as funções que só existem no Estado (juízes, magistrados, diplomatas, etc). Dos restantes licenciados da Administração Pública, separam-nos em dois grupos. O primeiro agrega as profissões em que o Estado é o empregador dominante, embora também existam no sector privado, como: médicos, enfermeiros, professores do ensino básico, secundário e superior. O outro abrange os profissionais que estão bem representados em ambos os sectores, tais como: engenheiros, economistas, informáticos e juristas.

Os do primeiro grupo, na média, auferem mais do que os seus congéneres privados (+27,5%). Face a isto, os autores referem que este diferencial pode ser um indicador de que estas profissões não são completamente compráveis nos dois sectores. Sublinham, a este propósito, as áreas da saúde e do ensino superior, onde muitos dos seus profissionais públicos desempenham funções particularmente exigentes em termos de qualificações, as quais não têm correspondência no sector privado. Os salários que estes funcionários públicos auferem também reflectem, por sua vez, o seu poder negocial, decorrente da importância social das suas funções e do papel dos seus sindicatos.

Quanto aos outros, a situação é completamente inversa. Na média, um engenheiro, um informático, um jurista ou um economista da função pública ganha menos, respectivamente, -4,3%, -13,8%, -1,1% e – 18,6% do que um trabalhador com idênticas habilitações no sector privado. Este diferencial no terceiro quartil passa para -19,1%, -26,3%, -21,8% e – 36,6%.

Este diferencial ocorre, ainda por cima, sem se tomarem em consideração “compensações em espécie e outros benefícios, que têm particular relevâncias no sector privado”.

Se for licenciado em engenharia, direito ou economia e se alguém lhe vier falar dos privilégios da função pública, esfregue-lhe com este números na cara.

Todas as partes estão analisadas. Talvez falte uma síntese global. É o que iremos fazer a seguir.

Conclusão

Este estudo de Maria Manuel Campos e Manuel Coutinho Pereira permite-nos tirar conclusões muito interessantes. Aqui vão um par delas:

1. Os trabalhadores não qualificados do sector público ganham bastante mais do que os seus congéneres do sector privado. É pena que o estudo não tenha avançado mais nesta análise;

2. O peso dos não qualificados no sector privado, comparativamente ao do sector público, é esmagador. Os trabalhadores não qualificados do sector privado ganham muito pouco. Em regra, ganham o salário mínimo ou pouco mais. Mais, a desigualdade salarial no sector privado é enorme. Isto diz muito sobre o perfil de especialização da economia portuguesa e sobre o que somos e o que queremos ser como país;

3. Os trabalhadores da Administração Pública que dispõem de licenciatura ganham mais à entrada, mas a sua progressão na carreira é muito mais lenta. Só que nos últimos anos têm entrado muito poucos funcionários Assim, se é verdade que os trabalhadores do sector privado ganham menos no início, passado alguns anos os seus salários ultrapassam os do sector público;

4. Os salários de uns e outros estão correlacionados, o que não é novidade. Os níveis salários do sector público influenciam os do privado e vice-versa;

5. As profissões que só existem na Administração Pública ou que são dominantes no mercado de trabalho têm níveis salariais superiores aos das profissões do sector público que estão em concorrências com as do sector privado (licenciados em engenharia, direito e economia);

6. Essas profissões são mais mal pagas no sector público do que no privado e esse diferencial acentua-se ao longo do tempo. Na prática, o sector público não é concorrencial com o privado para este perfil de trabalhadores;

7. Este estudo não incorpora todas as alterações verificadas desde 2005. Em 2006, 2007 e 2008 verificaram-se perdas de salários reais na função pública, que só muito parcialmente foram compensadas em 2009;

8. Também durante este período, foi alterado o regime contratual da função pública. O regime de nomeação foi substituído pelo contrato de funções públicas, que configura uma precarização do vínculo contratual e, em geral, uma equiparação desse vínculo ao previsto para todos os restantes trabalhadores (estabelecido no Código do Trabalho);

9. Nesse processo, as progressões na Administração Pública foram significativamente restringidas. As progressões obrigam a uma acumulação de 10 pontos nas sucessivas classificações de serviço anuais, sendo que, por um lado, as classificações de “Bom”, “Muito Bom” e “Excelente” asseguram, respectivamente, pontuações de 1, 2 e 3 e, por outro, as classificações de “Muito Bom” e “Excelente” não podem ultrapassar, respectivamente, 20% e 5%. Em média, um trabalhador da função pública vai precisar de 8 anos para progredir para a categoria seguinte; podendo esse período atingir, no limite, os 10 anos;

10. O Recenseamento Geral da Administração Pública incorpora todos os funcionários que trabalham para o Estado independentemente do tipo de vínculo. A maior parte dos cidadãos imagina que todos s que trabalham para o estado o fazem com contratos estáveis. Não é assim. Uma percentagem muito significativa desses funcionários, em especial dos mais novos, dispõe, simplesmente, de contratos a prazo.

Em suma, este estudo é muito interessante e só foi pena que os seus autores optassem aqui e ali por um estilo panfletário. Esse registo só permite que, colectivamente, vamos exprimindo o nosso pior defeito: a inveja. Os salários de ambos os sectores estão estreitamente relacionados. Não é por os salários dos funcionários públicos serem piores ou por estes terem piores condições de trabalho que os trabalhadores do sector privado ficam melhor. Também se os salários dos trabalhadores do sector privado e as suas condições de trabalho se degradarem, os funcionários públicos não ficam melhor. Muito pelo contrário.

Esta disputa, colocada neste termos, só interessa aos patrões e administradores de empresas que querem cada vez mais pagar menos aos seus trabalhadores. A inteligência ou, sobretudo, a falta dela não é património dos trabalhadores do sector público ou do privado. Como nos diz Carlo Maria Cippola, a estupidez está subestimada no universo humano. Há sempre mais estúpidos do que imaginamos. Para este autor, um estúpido é alguém que produz danos a outro ou outros sem que daí retire qualquer benefício, pelo contrário, gerando prejuízos a si próprio também. Quem é que quer continuar a ser estúpido?

quarta-feira, setembro 28, 2011

Um citação de Krugman muito a propósito

“A questão é que não se pode ter tudo: um país, de três, tem de escolher dois. Pode fixar a sua taxa de câmbio sem enfraquecer o seu banco central, mas apenas mantendo controlos sobre os fluxos de capital (como a China na actualidade); pode deixar livre o movimento de capitais e manter a autonomia monetária, mas apenas se deixar flutuar a taxa de câmbio (como o Reino Unido ou o Canadá); ou pode decidir deixar livre o capital e estabilizar a moeda, mas apenas com o abandono de qualquer possibilidade de ajustar as taxas de juro para combater a inflação, ou a recessão (como a Argentina actualmente ou, para esse efeito, a maior parte da Europa)”

terça-feira, setembro 20, 2011

O Euro, essa grande conspiração

Seja ensaio ou ficção, qualquer livro da Aletheia é sempre um thriller. O “Como nos Livramos do Euro?” não foge à regra. Apesar de tudo tem uma ou outra ideia interessante. A principal é que o euro permitiu reconfigurar oligopólios nacionais, muitos deles sobre a forma de cartéis, à escala da Zona Euro. Qualquer cartel gera preços superiores aos de equilíbrios e, assim sendo, o aumento das vendas por parte de um dos seus membros face à quota que lhe está destinada gera um lucro adicional. Esse incentivo torna este tipo organização muito instável. Qualquer cartel implica, assim, um elevado grau de controlo entre todos os participantes no conluio. Esse nível de controlo só é possível a uma escala supranacional se existir uma moeda comum. A existência de várias moedas e das respectivas flutuações cambiais torna esse controlo muito pouco eficaz.

Para o autor (Jean-Jacques Rosa) a existência desses cartéis é que está na base da baixa produtividade da Europa e, especialmente, da Zona Euro e, portanto, do anémico crescimento económico verificado desde o início do processo de convergência nominal, iniciado em meados da década de noventa e que se concluiu com a criação do Euro. O autor é adepto da teoria da conspiração e, consequentemente, considera que tudo foi planeado pelos grandes grupos empresariais europeus para que assim fosse.

A ideia, mais do que interessante, tem lógica. Mas não basta ter lógica. É preciso outra sustentação empírica, que o autor não avança. A parte da conspiração parece-me mais rebuscada. Percebo a necessidade de se explicar porque é que as coisas são como são. Mas a explicação mais simples talvez seja a da incompetência dos economistas “mainstrean”, associada ao deslumbramento dos políticos, que nos têm governado, com tudo o que cheire a expectativas racionais, mercados auto-reguláveis, equilíbrios orçamentais e quejandos.

sexta-feira, setembro 16, 2011

É preciso fazer um desenho?

Para quem ainda tenha dúvidas sobre o que diz Robert B Reich e que aqui reproduzi, aqui vai um desenho. Ninguém tem dúvidas, pois não?

terça-feira, setembro 13, 2011

Depois os ricos que não se queixem

Será que os americanos estão a gastar mais do que os meios que têm sido postos à sua disposição? Para Robert Reich, no “After-shock. A Economia que se segue e o futuro da América”, esta não é a pergunta certa. A pergunta certa é: têm sido colocados à disposição da maioria dos americanos os meios que lhes permitam gastar o que devem e o que é melhor para o crescimento económico dos EUA? A resposta é não.

Desde há cerca de trinta anos que se vem registando o congelamento e, mesmo, a regressão dos salários reais da classe média americana, apesar do crescimento económico verificado durante esse mesmo período. Em contrapartida, a riqueza nacional tem-se concentrado nos percentis mais elevados. Para que o fosso não fosse maior no que respeita aos níveis de consumo e de qualidade de vida, a classe média tem recorrido a várias estratégias de adaptação. Trabalha mais (as mulheres passaram a ter um participação crescente na população activa, trabalham-se mais horas e acumulam-se empregos em “part-time”) e endivida-se cada vez mas também. O resultado, como se vê, é um agravamento da desigualdade e, sobretudo, um crescimento económico que vai de bolha em bolha especulativa. Mais, não existe mais margem de manobra para a continuação dessas estratégias de adpatação.

Segundo Reich, se nada se fizer no actual quadro político americano, não é de estranhar que em dez anos a resposta política a esta crescente desigualdade se faça fora desse quadro. Não seria estranho que viesse a ser eleito um Presidente com um programa político assente no ressentimento (saída das Nações Unidas, OMC, Banco Mundial e FMI; recusa do pagamento de juros à China e suspensão do comércio com esse país a menos que permita a flutuação da sua moeda; proibição das empresas com lucros de despedir os seus trabalhadores; equilíbrio estrito do orçamento federal; fixação anual de tetos máximos de rendimento; criminalização das transferências financeiras para o exterior; proibição da banca de investimentos; reforço do orçamento da defesa; tolerância zero para os imigrantes; etc). Este seria um cenário político mau para todos, inclusivamente para os mais ricos.

Se não se quer arriscar, o melhor será mesmo, no actual quadro político, estabelecer um novo acordo para a classe média. As medidas apontadas são muito interessantes: imposto sobre o rendimento invertido, que suplemente os actuais níveis de rendimento para a classe média; taxas marginais de tributação mais elevadas para os ricos; generalização do seguro de salário, que fomento o reemprego, em complemento ao tradicional apoio ao desemprego; aumento da oferta de “bens públicos”; etc.

Há uns tempos um médico amigo descrevia uma situação muito interessante vivida no Hospital de S. João depois do 25 de Abril. Antes do 25 de Abril, havia duas cantinas: uma para os médicos e outra para os enfermeiros e auxiliares. Na primeira havia sempre dois pratos à escolha, enquanto na segunda só havia um prato. A primeira reivindicação após o 25 de Abril não foi a de todos passarem a poder optar entre dois pratos. Foi a de os médicos passarem a dispor de um só prato.

Este é um dos exemplos, como muitos outros, em que a psicologia social parece mostrar que as pessoas retiram tanto ou mais prazer na redução dos rendimentos dos outros, quando os consideram ilegítimos, do que no aumento do seus. É para essa economia do ressentimento que parece que vamos caminhando também na Europa e em Portugal. Depois que ninguém se queixe.

quinta-feira, junho 30, 2011

É o fim da classe média, estúpido!

“O Trabalho das Nações”, de Robert B. Reich, foi um dos livros que mais me marcou. Mais tarde li “O Futuro do Sucesso: Viver e Trabalhar na Nova Economia”. Robert B. Reich é um liberal, à americana, e foi Secretário do Trabalho na primeira Administração Clinton. Esteve com Geral Ford e Jimmy Carter também. Ensinou em Harvard, na Kennedy School e em Brandeis, em Boston.

Isto tudo para dizer que é um economista e um político maduro. Um homem extraordinário que deixou a Administração Clinton porque, um dia, o seu filho mais novo lhe pediu para o acordar quando chegasse, pois “queria ter a certeza que já estava em casa”. Como ele disse, muitas vezes as nossas prioridades são fortemente abaladas e acabamos por “reconhecer que as relações com a família, os amigos e a vida em comunidade constituem a principal razão de ser da nossa vida. Podemos, se assim o desejarmos, optar por uma vida mais cheia e equilibrada e podemos criar uma sociedade igualmente mais equilibrada”.

Explica-nos, agora, de uma forma muito simples porque é que nada disso está a acontecer.

sexta-feira, abril 22, 2011

A moral cega-nos

Este último livro (“Economia, Moral e Política”) de Vítor Bento é um pouco indigente. O autor desculpa-se logo ao início dizendo que não teve muito tempo para o escrever. O último capítulo, aliás, constitui um outro texto que escreveu e que aparece aqui reciclado.

O livro não é tanto uma relação entre a economia, a moral e a política. É muito mais a descrição de como a moral do autor influencia a sua leitura económica e o seu posicionamento político. Apresentam-se dois ou três exemplos.

Os credores estão sempre de boa fé e, quando se verifica um incumprimento, são sempre vítimas dos devedores. Afirma mesmo que existe assimetria de informação entre credores e devedores, a favor dos segundos (estão sempre em melhores condições de avaliar o risco). Hoje as coisas são muito mais complexas. Muitos de nós somos credores e devedores ao mesmo tempo. O sistema financeiro é que regula esses diferentes estados. É que também ele é credor e devedor em simultâneo. Como se verifica com muitos produtos derivados, qualquer um de nós pode estar a endividar-se a uma instituição financeira e ao mesmo tempo a comprar a sua dívida que essa mesma instituição ou outra lhe oferece devidamente titularizada e empacotada com outra.

A crise financeira resulta, para o autor, de vários factores: de uma bolha especulativa, de desequilíbrios macroeconómicos à escala global (excesso de poupança na China e excesso de consumo nos Estados Unidos), de um sector financeiro desregulado, de gestores, incentivados por prémios absurdos, mais preocupados com objectivos de muito curto prazo das empresas e não com a sua sustentabilidade. Afirma também que os Estados para evitarem o colapso da economia mundial tiveram que compensar o ajustamento nos balanços dos privados com mais investimento público e mais injecção de liquidez pelos respectivos Bancos Centrais. Depois disto tudo, conclui que a manutenção do estado social, sobretudo na sua versão europeia, é insustentável. Percebem a relação? Enfim, percebe-se que, para o autor, qualquer que seja o diagnóstico a conclusão é sempre a mesma. Mesmo que a relação entre o diagnóstico e a conclusão seja a mesma que existe entre o toucinho e a velocidade. O que estamos a assistir é a uma profunda redistribuição a favor de quem provocou esta crise e é o estado social que, não a tendo provocado, a está a pagar. Onde é que está a moralidade disto é que não sei.

A última é uma autêntica pérola. O mercado tem o encargo de produzir riqueza para que o Estado possa consumir dela uma parcela. Pelos vistos, o Estado não produz riqueza, o que é no mínimo estranho. Ficamos a saber que uma operação num hospital público não se consubstancia na produção de riqueza enquanto se essa operação se realizar num hospital privado já se produz essa riqueza. Também estava convencido que quem produzia riqueza eram as empresas, as famílias e os Estados. Pelos vistos são os mercados que fazem camisolas, bonés e computadores.

Enfim, os meus valores são diferentes dos do autor e, por isso, olhamos de maneira a economia e a política. Não sei se são melhores, mas que são diferentes, lá isso são.

segunda-feira, abril 18, 2011

A economia da culpa

A extensão da análise económica a todos os campos da vida social produz, como sabemos, resultados hilariantes. Francisco Louçã descreve-nos no seu mais recente livro (“Portugal Agrilhoado. A Economia Cruel na Era do FMI”) mais uma dessas análises.

Robert Barro, eterno candidato a Nobel da Economia, procurou demonstrar a relação entre a ética no trabalho e a crença no inferno e o produto “per capita”. As conclusões falam por si. Quanto maior é a crença no inferno melhor é a atitude perante o trabalho. Já o aumento da riqueza conduz os cidadãos à devassidão.

Vários factores influenciam o desenvolvimento da economia. Ouvimos falar de muitos. O que não sabíamos é que o complexo de culpa seria um deles. Talvez seja por isso que os economistas “mainstrean” nos tentam explicar todos os dias que a crise actual resulta das nossas expectativas desmesuradas. Mal inculquemos que a culpa é nossa, rapidamente a situação se inverterá. Não vale é ir às missas e muito menos à comunhão.

sábado, abril 09, 2011

Montanha russa e matraquilhos

Ontem ouvi mais um maluco qualquer dizer que a intervenção do FMI em Portugal seria um bálsamo. Não sei em que mundo estas pessoas vivem.

Um dos livros que mais me impressionou nos últimos dez anos foi a “Globalização. A grande desilusão”, de Joseph Stiglitz. Aqui se contam, quase na primeira pessoa, os sucessivos disparates dos programas de ajustamento estrutural “one size fits all”
do FMI.

Fui recordar algumas palavras que se diziam nesse livro. Recupero umas frases do prefácio. “As suas [do FMI] soluções fracassaram muitas vezes, e os seus insucessos foram mais numerosos que os seus êxitos. As políticas de ajustamento estrutural do FMI – as que se destinam a ajudar um país a adaptar-se a crises e desequilíbrios mais persistentes – conduziram a fomes e a conflitos em muitas regiões do mundo; e mesmo quando os resultados não foram tão maus, mesmo quando essas políticas conseguiram gerar crescimento durante algum tempo, muitas vezes os benefícios foram desproporcionadamente para os se encontravam em melhor situação, agravando a pobreza dos que estavam no fim da escala”.

Preparem-se para a descida aos infernos. Isto é para quem gosta da sensação de vertigem, da montanha russa. Sempre prefiro os matraquilhos.

sábado, abril 02, 2011

Os executivos armados em trolhas

A economia “mainstrean” sustenta-se numa série de silogismos. Partem-se de premissas e a partir delas tiram-se conclusões. Não há, na maioria dos casos, qualquer dedutivismo. Não se sabe se as premissas são verdadeiras. Intui-se que sim e isso basta.

Dan Ariely diz-nos que não nos devemos basear em intuições. Devemos experimentar, experimentar sempre. E depois, depois vêm as conclusões. Quando fazemos experiências descobrimos coisas surpreendentes.

Segundo as suas experiências, os prémios elevados podem ter efeitos contraproducentes sobre o desempenho. Desfocam as pessoas. Passa-se a dar mais importância ao prémios em si mesmos do que aos objectivos. Potencia o efeito de “aversão à perda”. Isto é, a maior parte dos executivos toma os bónus como certos e, por essa razão, começa a pensar no que vão fazer com eles. E isso pode gerar mais infelicidade do que felicidade. Sabemos que a infelicidade por perdermos algo que sentimos como nosso supera a felicidade de ganharmos qualquer outra coisa de valor equivalente.

A correlação entre prémios elevados e desempenho é negativa. No entanto, os prémios mais modestos melhoram o desempenho. Mas também aí existe controvérsia. Não é estatisticamente significativa a diferença de desempenho resultante de prémios baixos e médios.

Estas asserções são verdadeiras para actividades que requerem fortes aptidões conceptuais. No trabalho mecânico as coisas não se passam exactamente assim. Mas também é verdade que os executivos que ganham prémios milionários não os ganham a carregar tijolos ou baldes de cimento.

domingo, janeiro 16, 2011

Menos economistas, mais engenheiros

Jacques Attali, antes de se dedicar à análise das dívidas soberanas (de que falei aqui há dias), andou a escavar na crise financeira mundial e na do “subprime”, que lhe deu origem ("A crise, e agora?"). Evidencia algumas coisas que para aqui tenho dito.

Tudo começa nos Estados Unidos com um peso cada vez maior do lucro, em detrimento do trabalho, no rendimento nacional. Essa alteração da repartição primária do rendimento resulta, por um lado, dos lucros crescentes da actividade financeira, com as associações que estabelece (e financia) com as indústrias produtoras de bens duradouros (em particular, a construção e o automóvel). Por outro, da diminuição real dos salários.

Tudo isto comprime a procura e esta, para se manter, exige um crescente endividamento dos cidadãos, das empresas e dos Estados. Gera-se uma economia cada vez mais alavancada. O sistema financeiro e o acesso ao crédito surgem como substitutos de uma justa repartição dos rendimentos.

Depois aconteceu tudo o que sabemos. Criou-se um monstro sem cabeça que, a globalização dos mercados financeiros (com recurso à internet), passou a ser incontrolável. Surgem produtos estruturados cada vez mais inextrincáveis. Propõem-se títulos aos clientes “cuja descrição consta de um manual de 150 páginas, que nenhum quadro superior de banco compreende”. Tudo isto é gerido pelos que Attali chama de “iniciados”, isto é, banqueiros, analistas e investidores, que dispõem de informação relevante que não partilham e que usam para seu benefício pessoal. Tudo isto corre bem enquanto as sucessivas “bolhas” (sobretudo no imobiliário) permitem que os activos se vão valorizando. Quando deixam de se valorizar, cai tudo como um castelo de cartas.

A solução apontada é utópica: a reprodução à escala global do estado de direito democrático, que, em cada país e conjuntamente com os mercados, tão boa conta deu nos últimos 60 anos. Só que isso não é possível para já. Os europeus precisaram de mais de mil anos de guerras para compreenderem a necessidade de o começarem a construir. Serão precisos mil anos de guerras mundiais para que isso aconteça à escala global?

Não sendo isso possível (pelo menos para já), resta criar os mecanismos de regulação que tornem “a profissão de banqueiro modesta e maçadora, como nunca devia ter deixado de ser”, privilegiando, ao mesmo tempo, "as carreiras de engenheiro e investigador”.

domingo, janeiro 09, 2011

Hoje como ontem

“Nunca houve, parece-me, na história do mundo, uma época em que a exibição grosseira e descarada da riqueza, sem qualquer elegância aristocrática que a redimisse, tenha sido tão ostensiva como naqueles anos antes de 1914. […] O mais extraordinário era o modo como toda a gente partida do princípio de que esta opulência trasbordante e excessiva das classes alta e média-alta inglesas iria durar para sempre, e fazia parte da ordem natural das coisas. Depois de 1918, as coisas nunca mais tornaram a ser as mesmas. O snobismo e os gostos caros regressaram, é claro, mas eram envergonhados e mantinham-se na defensiva. Antes da guerra, a idolatria do dinheiro era totalmente irreflectida e nenhum rebate de consciência a vinha perturbar. A excelência do dinheiro era tão inequívoca como a excelência da saúde ou da beleza, e um carro cintilante, um título de nobreza ou uma horda de serviçais confundiam-se, na cabeça das pessoas, com a genuína virtude moral”.

Esta é a forma como George Orwell nos descreve, no ensaio “Ah, Ledos, Ledos Dias”, a sociedade inglesa no início do século XX. No início do século XXI continuam-nos a convencer que a desigualdade de rendimento faz “parte da ordem natural das coisas”. Mais, estamos todos disponíveis para aceitar que assim seja por que nos convencem que não pode ser de outra forma, mesmo que a história contemporânea, sobretudo a da Europa do pós-guerra, nos tenha ensinado coisa diferente.