domingo, janeiro 10, 2010

Crise financeira: isto anda tudo mais ligado do que parece

Martin Wolf (“A reconstrução do sistema financeiro global”) tem o mérito de nos explicar o funcionamento do sistema financeira de forma simples e, em especial, de nos explicar com clareza as relações entre os seus níveis macro e micro.

O sistema financeiro não é mais do que um amontoado de promessas. Paga-se hoje e espera-se que amanhã as promessas, contra as quais foi efectuado esse pagamento, se cumpram. Mais, o sistema de promessa é de tal maneira complexo que, nesta altura, paga-se hoje em função de promessas de promessas.

Isto tudo assenta numa palavra: confiança. O Estado tem, aqui, um papel central. Sem a garantia dos depósitos, o sistema financeiro obrigaria, por exemplo, a bancos mais capitalizados, a um “gap” entre pagamentos e recebimentos menor, a taxas de juro mais elevadas, etc. Enfim, existiria menos confiança.

Quando se instala a crise, como a actual, a pirâmide de promessas desmorona-se como um castelo de cartas. Como se verifica, muitas das dívidas das instituições financeiras, como os bancos, acabam por ser dívida pública contingente: a indústria financeira privatiza os lucros e socializa os prejuízos, sempre que esses prejuízos colocam em causa a sua liquidez.

Mas, muitas crises, como a actual, têm razões fundas que se prendem com significativos desequilíbrios macroeconómicos globais. Existe excesso de poupança em muito países emergentes e em outros países desenvolvidos (como a Alemanha e o Japão) e essa poupança tem permitido um afluxo de capitais para o EUA sem precedentes. O caso da China é o mais paradigmático. Apresenta níveis de poupança de cerca de 60% do PIB. O investimento é muito elevado mas, mesmo assim, situa-se nos 50% do PIB. Esse investimento (mas não só) gera crescimentos do produto de dois dígitos. O consumo doméstico anda na ordem dos 40% do PIB, com tendência para diminuir. Isto tudo gerou, em 2006, um excedente das contas correntes da China de 9,1% do PIB.

Essa drenagem de poupanças para o EUA tem vindo a gerar um défice crescente da sua Balança de Transacções Correntes. Este défice das suas contas-correntes não tem servido para incrementar o investimento mas para estimular o consumo privado, produzindo, por sua vez, baixos níveis de poupança.

Este défice das contas-correntes acaba por gerar uma série de (aparentes?) “almoços grátis” americanos. A sua economia continua a ter capacidade para absorver de forma, mais ou menos, duradoura esses capitais. As dívidas contraídas são, ainda por cima, denominadas em moeda local (Dólar). Assim, os EUA têm a vantagem de poderem, por si só, controlar e reduzir o nível de dívida, bastando, para tal, desvalorizar a sua moeda. Como a sua economia nem sequer é demasiado aberta, uma política deste tipo não tem, propriamente, efeitos inflacionários por aí além. [O problema seria de quem lhes emprestou o dinheiro que, de repente, ficaria sem uma parte importante dele. Só para assustar ainda mais, aparentemente, uma desvalorização de 40% do dólar permite resolver o problema do défice das contas-correntes americano; só que, também, a paridade do dólar em relação ao Euro (cerca de 2 Dólares para cada 1 Euro) tornar-se-ia insustentável para os países da União Europeia e, em especial, para os da Zona Euro].

O recurso a produtos financeiros de risco cada vez mais elevados nos EUA, como o “subprime”, tem que ver com esse excesso de financiamento. Era preciso, pois, criar condições para continuar a alimentar os gastos das famílias. Se não fossem elas, sem grande dinâmica de investimento privado, o défice federal tinha que ser ainda muito maior do que é.

Em conclusão, excesso de poupança num lado (China, Alemanha, Arábia Saudita, etc) gera excesso de capitais no outro (EUA) e uma coisa é consequência da outra e vice-versa. Não se consegue saber bem é se pesa mais o facto de os EUA gastarem muito e pouparem pouco ou o facto de os outros pouparem muito e gastarem relativamente pouco.

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