sábado, março 06, 2010

Mais Lisboa, menos paisagem

Costuma-se dizer que “Portugal é Lisboa e o resto é paisagem”. Esta expressão presta-se a múltiplas interpretações. Mas todas elas traduzem a opinião generalizada de que existe um excessiva preocupação de todos os governos com a situação de Lisboa, entendida na sua expressão mais ampla de Lisboa-região ou de Área Metropolitana de Lisboa ou, mesmo, da antiga região NUTS II de Lisboa e Vale do Tejo (LVT), em detrimento do resto do país.

As consequências dessa excessiva preocupação deram origem a um país macrocéfalo, onde se confundem os interesses de Lisboa com os interesses de Portugal. Esta excessiva concentração de pessoas, actividades e riqueza tem sido gerada por um ciclo vicioso.

Tudo começa por um modelo económico que espera de uma aposta continuada na concentração de investimento público em Lisboa, muito dele financiado pelos Fundos Estruturais, ganhos de competitividade de tal forma que, por mera difusão, o hipotético crescimento económico se alastraria para resto do país. Em termos espaciais, é como se na prática se admitisse que, por mancha de óleo, o progresso se difundiria para uma envolvente cada vez mais alargada que, no limite e por absurdo, transformaria Portugal numa mega Lisboa.

Este modelo não se revela auto-sustentável e sempre que acaba um ciclo de acumulação logo outro se tem que iniciar com mais investimento. Umas vezes aposta-se em auto-estradas, pontes e ferrovias, noutras em cultura e reabilitação urbana, noutras ainda no reforço e centralização do sistema científico e tecnológico. As apostas vão variando em nome das teorias da moda, que vão adquirindo nomes cada vez mais esotéricos.

O actual nível de endividamento externo também resulta deste modelo territorial. Desde 2008 que Lisboa passou a ser a região NUTS II mais aberta do país, ultrapassando a região do Norte. Mas passou a sê-lo não pelo aumento das exportações mas pelo acréscimo sistemático e maciço das importações.

O que isto tem revelado é um efeito de “crowding out” esmagador sobre outros territórios nacionais e sobre as actividades económicas que aí existem e as que aí se poderiam desenvolver. O resultado é o estreitamento cada vez maior da base territorial de suporte à competitividade nacional e a estagnação da actividade económica em Portugal, que já dura há uma década.

Apesar de um ou outro trabalho académico, tem faltado evidência empírica que permita desmontar esta autêntica fraude económica. Um recente trabalho de Alfredo M. Pereira e Jorge M. Andraz (“Investimento público e assimetrias regionais”) lança alguma luz sobre este assunto. Estes autores, a partir do investimento público em infra-estruturas de transporte realizado durante o período de 1980 a 1998, quantificam os seus efeitos de “spillover” sobre o investimento privado, produto e emprego nas diversas regiões NUTS II.

Concluem, então, que os efeitos de “spillover” beneficiam sobretudo LVT. Por um lado, apresenta, face a todas as outras regiões NUTS II, os maiores efeitos de “spillover” do investimento que aí se efectiva, com excepção do efeito no investimento privado (que apresenta mesmo um valor negativo; o que parece corroborar hipótese da existência de “crowding out”). Por outro, apresenta os maiores efeitos de “spillover” do investimento público efectuado nas outras regiões NUTS II. Mais, os efeitos de “spillover” em LVT dos investimentos realizados fora desta região NUTS II são maiores do que aqueles que resultam do investimento público que aí se localiza.

Estes dados permitem aos autores afirmarem que o “investimento público tem contribuído fortemente para a concentração da actividade económica em LVT e, consequentemente, tem contribuído marcadamente para a macrocefalia do país”.

Na Região do Norte passa-se exactamente o contrário. Os efeitos de “spillover” do investimento público efectuado nesta região NUTS II são superiores aos que resultam dos investimentos realizados fora dela. É a que regista maior efeito ao nível do investimento privado do investimento público realizado. O investimento público realizado noutras regiões do país tem um efeito negativo sobre o produto desta região NUTS II. Com base nestes resultados, os autores sublinham que a “Região do Norte parece ser a grande perdedora”.

Face a estas conclusões, os autores deixam um alerta para que não se projectem “programas de convergência nacional à custa das assimetrias internas”.

Contra estas evidências o governo português afirma e faz o contrário no QREN. Pelos visto, para ele, não é o investimento realizado noutras regiões que gera efeitos de “spillover” em Lisboa. É o investimento realizado em Lisboa que gera efeitos de “spillover” sobre o resto do país. Assim, não lhe chegou atribuir a Lisboa praticamente a esmagadora maioria dos recursos a financiar pelo Fundo de Coesão, como negociou com a Comissão Europeia, com sucesso, o desvio dos outros Fundos Estruturais (a aplicar nas regiões de “convergência” do Centro, Alentejo e Norte) para Lisboa.

E o ciclo vicioso continua. Até quando?

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