quinta-feira, março 25, 2010

Vale mais uma má moeda na mão do que duas boas a voar

A economia, a boa, a da Bayer, sempre nos fez crer que acréscimos de produtividade relativa de uns países face a outros geravam ajustamentos do lado dos salários e da taxa de câmbio que, mais tarde ou mais cedo, reporiam os equilíbrios das contas-correntes entre eles. Nesse mundo, tudo é simples.

O raciocínio tem toda a lógica. Só que a lógica nem sempre preside ao governo do mundo.

Vá-se lá saber porquê, na economia mundial persistem profundos desequilíbrios macroeconómicos que não há maneira de se corrigirem. Existe excesso de poupança de um lado e excesso de dívida do outro. É tão problemático o excesso de poupança como o excesso de dívida. Por razões morais, valorizamos a poupança. Mas só por isso. Em economia, a poupança só tem sentido se alguém estiver disponível para a mobilizar para fins produtivos, de preferência, ou consumo.

A Europa e, em particular, a zona euro são um caso particular desses desequilíbrios. Os países periféricos da zona euro caíram numa armadilha que não tem saída à vista. Convenceram-se, mal, que no euro deixavam de ter problemas de défice das suas contas-correntes. Ouvi vários economistas afirmarem, no tempo de todos as utopias, que essa coisa da BTC de um país deixava até de fazer sentido.

O problema começou há muito tempo atrás. Com a reunificação, os esforços de reconstrução da Alemanha do Leste impuseram um custo acrescido a todos os países por via do aumento das taxas de juro. Isto é, uma decisão política de um país impôs custos brutais a outros.

Na altura, argumentou-se que não havia remédio. Mas para que, aparentemente, tal não se repetisse, fez-se o negócio do euro. A ideia era simples mas ingénua. Já que se tem que seguir a política monetária da Alemanha, quer se queira, quer não, então, o melhor é criar uma união monetária com ela. A ideia era que, participando todos da mesma moeda, poder-se-ia ter uma política monetária que mais conviesse a todos. Ouvi muitos argumentos desse tipo. Ninguém cuidou de saber se era possível ter uma mesma moeda e uma mesma política monetária que satisfizesse países com níveis de desenvolvimento muito distintos. Aparentemente, não havia outra solução.

O confronto com a realidade, em Portugal, começou aos poucos. Ao princípio, não se deu conta do que estava a acontecer. O processo de convergência nominal estava a correr bem e ninguém se preocupou com o endividamento externo. E ele podia não ser o que é hoje. Sem a entrada da China na OMC e a globalização, a troca de carros, máquinas, material eléctrico e electrónica por sapatos, camisolas e turismo talvez resolvesse, pelo menos em parte, o problema.

Mas o problema estava lá. Primeiro começou pela queda da poupança a partir do início dos anos 90, com a adesão ao SME. Durante um par de anos, o afluxo de capitais (Fundos Estruturais e IDE, ainda para mais com forte potencial exportador), compensou essa queda e iludiu o problema. Com a estabilização dos fluxos de Fundos Estruturais e a queda do IDE, devido ao alargamento a leste da União Europeia, o endividamento externo disparou.

Quando o problema apareceu na sua configuração actual, começou-se por culpar os governos. É que os economistas nunca erram, quem erram são os políticos. O Guterres serviu de bombo da festa. É verdade que se gastou mais do que se devia. Mas qual teria que ser o superávite orçamental para compensar o diferencial entre o investimento e a poupança? Mais, como é que se pode cortar no investimento, público e privado, num país com um atraso estrutural tão significativo e que quer convergir com a média europeia?

Veio o Barroso, com a Manuela Ferreira Leite, o Santana, com o Bagão Félix e o Sócrates, com o Teixeira dos Santos, e o problema não só não se resolveu como se agravou. Mais, durante quatro anos, tivemos o professor doutor economista Cavaco Silva a Presidente e nada. Tantos Primeiros-ministros e tantos Ministros das Finanças ao burro e o burro no chão. Mesmo com défices públicos abaixo dos 3% o endividamento externo nunca deixou de aumentar. É que o governo pode controlar o endividamento público. O que não pode é controlar o endividamento privado. Esse sim, é que disparou.

Nas últimas semanas começámos a acordar para o problema real. Era mais simples e confortável culpar somente os políticos. Se a culpa fosse só deles, a coisa resolvia-se. Mais tarde ou mais cedo vinha um que encontrasse a solução.

Só que a solução não é fácil e não depende só deles. Vamos todos ter que participar na resolução deste problema e, ainda para mais, a solução também não depende só de nós.

Voltarei a este tema se, entretanto, o euro não acabar e com ele a União Europeia. Prometo ser breve e ainda voltar a tempo.

1 comentário:

Vasco Leite disse...

Concordo com o texto do Rui Monteiro e apetece-me acrescentar uma ideia que pode ser sintetizada com uma pequena analogia. “Se a criança souber que junto a um precipício existe uma rede que a protege das consequências da queda, então a criança brincará por lá sem qualquer cuidado.”

As crianças periféricas, como são os exemplos da Grécia e de Portugal, sabem que o seu nível de endividamento não afecta significativamente as taxas de juro (médias) das suas economias. A ideia é que as taxas de juro desses países seguem a política monetária do banco central europeu, o qual actua com base na situação económica das economias do core (Alemanha, Itália, França), e muito pouco com base na situação económica dos países da periferia.

Actualmente, sendo verdade que os spreads para a dívida pública aumentaram nesses países periféricos em virtude do elevado nível de endividamento, também é certo que as taxas de juro euribor, nas quais os agentes privados se financiam, têm seguido em baixa em resultado da política monetária comum expansionista, fazendo com que a taxa de juro média seja reduzida mesmo numa conjuntura em que os níveis de endividamento são ultra-elevados. Por isso, o precipício baseado na premissa teórica de que um elevado nível de endividamento leva a uma desvalorização da moeda nominal e a um forte aumento das taxas de juro não se verificou nesses países, porque estão protegido pela rede chamada Euro e politica monetária comum.

Cá está, as crianças sabendo da existência desta rede tiveram um forte incentivo para brincar juntinho ao precipício ao longo dos últimos anos, e a brincadeira traduziu-se no aumento do endividamento. Se por um lado, elas não caíram no precipício porque esta rede evitou a alta dos juros e a forte queda no crescimento económico que daí resultaria, não é menos verdade, que por outro lado, ao criar-se o incentivo para o aumento do endividamento, a Europa força-nos agora a um ultra-conservador ajustamento de todos os agentes da economia, condicionando o crescimento económico e a criação de emprego. Será que a rede dá com uma mão e tira com a outra?